segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

(Des)Focamento.


Chamo-me um nome que alguém me pôs, décadas atrás, sem pensar no seu significado, sem pensar no peso que me transmitiria ao longo dos anos. Tenho décadas de vida sem saber muito bem quantas. É sempre assim. Sempre que tento lembrar-me de alguma coisa importante no momento a minha cabeça atraiçoa-me e não me leva lá. Depois, de repente, traz-me a recordação pedida quando eu já nem sei onde a colocar. Não reconheço esta casa onde estou. É branca e luminosa, chão de tábuas longas de madeira encerada. Há tanta luz que por vezes preciso de fechar os olhos para a conseguir atenuar. Não fico de olhos fechados por muito tempo. Tenho medo da morte. Que ela me esteja a vigiar, à espreita, à espera de me ver definitivamente esquecida de mim. Penso que quando isso acontecer, ela virá para me levar. De que serve alguém cuja memória não funciona, cujo cérebro não consegue relacionar dois dias, duas palavras, dois sentimentos? Não, não quero estar consciente quando esse estado de inconsciência se instalar. Que incongruente é o meu pensamento. Estava a falar da casa, não era? Há sempre música. Uma música de fundo que toca baixinho. Reconheço o som do piano e do violoncelo. Há alturas em que só o violoncelo se ouve. Nessas alturas páro. Toda eu estremeço, sustenho a respiração, concentro-me. Porque aquele som é o meu som, sou eu se eu fosse um instrumento. A grandiosidade, a sensualidade das formas dadas à madeira, a robustez das cordas, a sensibilidade do som. Indubitavelmente, eu sou[som] um violoncelo. A minha cabeça, sempre a minha cabeça. Sempre pensei muito e muito rápido. Era frequente conseguir fazer mais do que uma coisa ao mesmo tempo, correr daqui para ali sem nunca perder o norte, a compustura, o objectivo que tinha em mente. Subitamente, a minha ubiquidade foi enfraquecendo. Se fazia uma coisa não conseguia saltar rapidamente para outra, se me concentrava num pensamento, numa frase, numa imagem, não conseguia saltar para outra sem que a primeira continuasse a ocupar-me toda a capacidade reflexiva. Pode ser que esta casa seja minha. Consigo reconhecer a minha personalidade em determinados objectos, em determinadas cores, na luminosidade que sempre me atraíu e agora me fere os olhos, mas em mim repousa a sensação estranha de que vivo num lugar emprestado, onde me movimento com a certeza dos passos de proprietária, mas com a alma desfocada de hóspede em lugar estranho. E as vozes? De quem são as vozes que ressoam todo o dia na minha cabeça? Pedaços de mim também desfocados ou verdadeiras pessoas que aqui vivem comigo? A minha solidão é tão grande que é impossível que aqui viva alguém. Não, de certeza que as vozes que ouço são réstias da minha consciência desaparecida. Simulo uma normalidade que não sinto. Encaixo-me no que é socialmente aceite como normal e luto comigo mesma por não me sentir adaptada a essa normalidade.
A luz já deve ter diminuído, os meus olhos já se podem abrir.
Rodo o corpo. Levanto a cabeça da almofada e abro os olhos.
Mais uma vez. Um sonho. Um pesadelo. Uma alucinação.
Mais uma vez. Eu a provar a mim que a ubiquidade continua a existir. Eu sou várias e estou em diversos tempos simultaneamente
Mais uma vez. Eu vivo. Desfocada no lado ubíquo de mim.
Vera Lima-Vekiki Projects

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