O Natal tinha aura naquele tempo.
Um tempo longínquo, muito lá atrás no tempo, tão atrás que até parece impossível que tenha existido.
Afinal de contas os anos passam e as recordações têm tendência a ser empolgadas, como se tudo o que aconteceu fosse muitas vezes melhor do que aquilo que acontece.
Os cheiros são a memória mais forte desses dias. A lufa lufa diferente da de agora.
A importância da ida "à praça" comprar a abóbora para os sonhos.
A antecedência com que se comprava o bacalhau, retirando do exposto pequenas lascas salgadas para confirmar a cura, dando instruções ao senhor da guilhotina quanto ao corte das postas, os rabos que ninguém gostava.
A importância da compra do perú. De um tamanho considerável, mas sem esquecer a capacidade do forno. O tempero. Deixar de molho em água com limão e laranja para que a carne ficasse macia e saborosa. Fazer uma mistura de vinhos e licores para ir regando a assadura. O cheiro a espalhar-se por toda a casa, o verdadeiro cheiro do Natal.
Em casa da Avó os cheiros eram os dos fritos. Das mãos dela e completamente a olho, sem receita escrita, saíam os sonhos de abóbora, os coscorões e as fatias douradas.
Eram dias de muito trabalho que aos meus olhos eram dias mágicos. Agora que sei dar o valor ao trabalho que o Natal significa para quem o organiza, sei que eram dias estafantes apesar de em número de comensais não sermos muitos.
E afinal, o Natal dura apenas dois dias por ano. Dois dias em que todos queremos ser amigos, solidários, felizes. Dois dias para os quais trabalhamos, por vezes, um mês inteiro. Em 48 horas tudo termina. Em 48 horas a vida volta a ter o seu ritmo.
Amanhã é Natal, mas os cheiros são diferentes. Não há azevinho em jarras espalhadas pela casa, nem um alguidar enorme de barro na cozinha onde o perú amacia. Amanhã é Natal e ainda há presentes por comprar, embrulhar, e cartões por escrever.
Amanhã é Natal e não me apetece.
Texto : Vera Lima
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